quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Sangue de Lory

Sou uma pessoa de contrastes. E não se entendam contrastes por desequilíbrios... se bem que admito que eles existam. Pretendo com isto dizer que sou de carácter, sentir e ser moldado por uma vida de opostos. Um contraste de genes e instrução. Sou filho de gente pobre educado por ricos. Educado a ser temente a Deus e dele nem vislumbre. Amado como se ama um filho e abandonado com quem viu em mim um fardo.

Mas tornou-me mais forte... carente, mas forte. Sensível... mas com uma dose de frieza.

Sou sangue de gente humilde que nunca conheci, com quem pouco convivi e de quem me comecei a aproximar. E mesmo acerca destes, pouco sei, porque a vida assim o quis. Mas de todos, houve para mim quem se destacasse... e foi a mãe do meu pai. A minha avó. A minha adorável, linda, cheia de vida... avó. Que faleceu no ano passado e que através da minha tia, me deixou uma pulseirinha.

E o destino, o fado, a fatalidade e a sina seguiram o seu rumo.

Quis o destino que nos voltássemos a encontrar. Como que me permitindo uma última oportunidade. Um doce amargo. Como que sabendo os dias que se avizinhavam e a fatalidade que adviria. Quis o fado que eu pudesse sentir a felicidade de abraçar e reclamar o meu direito. O direito de sangue. De poder sentir o que todas as famílias devem sentir e que eu nunca tive. E a minha avó era toda ela fado. E o destino concedeu-me esse último ano da sua vida... para que pudesse relembrar com ternura estes encontrados sentimentos e chorar por todos os anos anteriores que os podia ter tido. No fim, a fatalidade levou-a.

Mas a sina, atenta, deu-me mais do que poderia pedir. Num gesto de complacência deu-me uma "bebé tia". Deu-me uma pessoa que tanto deu à minha avó, que tanto reteve dela, que em tanto se assemelha e que eu não quero perder... que não quero largar mais. Nem à pulseirinha.

"Acho que não me roubaram nada... não estou a ver nada em falta... esperem... a pulseirinha da minha avó!!!"

Depois de vasculhar o quarto, não encontrei a pulseirinha, que ainda se encontrava no mesmo envelope em que a "bebé tia" havia colocado e escrito o meu nome. Era capaz de jurar que estava na prateleira ao pé dos livros.

"De acordo com o que vimos no andar de cima e o que lá roubaram, trata-se de um grupo de crime organizado que pensávamos já se ter ido embora. Já apanhámos 6 delas... mas pelos vistos voltaram!" - disse o agente, enquanto recolhia impressões digitais da ombreira.

Ele disse "delas"? Depois de algumas explicações percebi. Eu fui assaltado por um grupo de romenas.... noutro contexto eu até teria ficado contente, até porque não me tinham levado nada.

"Oh colega... chegue aqui. O que é que lhe parece? Parecem impressões de uma criança." - disse o outro agente.

A minha cabeça continuava a vaguear pelas imagens de belas, exóticas, altas e esguias morenas... mas rapidamente foram substituídas por uma criança ao colo de ciganas velhas, gordas e vestidas de preto. Consegui com sucesso remover as novas impressões gráficas que me atormentavam e voltar ao meu fetiche pessoal. Se fui assaltado por "miúdas"... então que fossem boas!

Agora realmente tudo fazia sentido. Não me levaram o portátil, nem a máquina fotográfica nem tantas outras coisas que aqui tinha e que acreditava serem as primeiras coisas a desaparecer. Mas até então eu também desconhecia que existiam grupos de crime organizado femininos. Sabem o que roubaram no andar de cima? Roupa, sapatos, anéis, porta-chaves, canetas... e dinheiro, claro.

Mais tarde, enquanto me arranjavam a porta da frente, resolvi dar uma arrumadela no quarto. Sabem o que descobri? Claro que foi a pulseirinha. E sabem como me senti? Pois... isso eu também já não consigo colocar por palavras. 

Com isto chego a uma conclusão: se é para existirem assaltantes... então que sejam todas mulheres!!!

1 comentário:

Moquinha disse...

A lagriminha teima em cair...passámos tanto juntas, naqueles corredores de hospital,as noites de fado, os lanchinhos de aniversário, as tardes na baixa à procura de algo que ela tinha a certeza que havia não sabia era onde..., ainda recordo as lagrimas que lhe vinham aos olhos quando eu fazia mais um "milagre",o olhar terno e o amor que sentia por mim e pelos meus pais,amor esse q nos levou a passar o seu ultimo Natal junto dela...
Agora deixo-te com o ultimo fado que ela cantou:

Lágrima

Cheia de penas
Cheia de penas me deito
E com mais penas
E com mais penas me levanto
No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de querer tanto

Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim o castigo
Eu não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo

Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desepero
Que tenho de te nao ver
Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chao
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer

Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima
Por uma lágrima tua
Que alegría
Me deixaria matar

badge