sábado, 20 de setembro de 2008

Um dia na cozinha


Como havia prometido, estive a ensinar os meus sobrinhos a fazer compota e adorei a experiência. Quero também acreditar que eles gostaram desta experiência tanto como eu. Passámos os 3 umas horas engraçadas naquela cozinha, entre tirar fotografias, cortar a abóbora e raspar os limões. Confesso que eu próprio nunca havia feito compota. Estava meramente a seguir algumas dicas e direcções dadas por ela.

O objectivo: chegar ao fim da tarde com 2 boiões com compota de tomate e abóbora. Para depois lancharmos claro!

Começámos os preparativos, a arranjar a mesa, a cortar os frutos, a pesar o açúcar, etc. O que nos fartámos de rir. Apenas posso dizer que a compota de tomate ficou demasiado rija e a de abóbora queimou. Mas não foi por isso que desistimos. Saí de novo em direcção ao supermercado e rapidamente estávamos a fazer a segunda panela de compota de abóbora. E esta última ficou muito melhor que a de tomate.

Se caires de um cavalo a melhor coisa que tens a fazer é voltar a montá-lo. Se apanhares um susto debaixo de água a melhor coisa que tens a fazer é voltar a mergulhar. Nós queimámos a compota de abóbora e não quisémos deixar para outra altura uma segunda tentativa.

Aprendemos com os erros. A compota de tomate ficou rija porque a deixámos demasiado tempo ao lume e a de abóbora queimou porque o lume estava demasiado alto. A última compota que fizémos ficou mesmo no ponto e isto porque foi fruto dos erros que havíamos cometido antes.

Errar é bom... pensem nisso.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Eu sei que sou um T


Eu devia ter entre 5 e 7 anos de idade. O meu irmão já tinha um Atari 2000 e ofereceram-lhe um Sinclair Spectrum 48k. Eu também queria um computador. Para jogar jogos claro. E foi o meu pai que me ofereceu o meu primeiro computador. Um Timex 2048. Era lindo... muito mais louco que o Spectrum 48k do meu irmão. Não tenho a certeza disto que vou dizer mas acho que aquele Timex, que ainda guardo e funciona, foi comprado em 2ª mão... e é claro que por si só não constitui problema. Não tenho nada contra comprar equipamento bom em segunda mão. Mas a verdade é que o meu computador tinha uma avaria e raramente conseguia carregar jogos nele. Ironia do destino... esta foi a melhor avaria de toda a minha vida, pela qual não voltaria atrás...

A minha história assemelha-se em muito com a história do meu povo. A história repete-se. 500 anos antes os Portugueses partiram para o mar em procura de novos mundos e novas rotas comerciais. E sejamos francos... por muito que achemos que somos descendentes de valorosos exploradores e navegadores, estes não o fizeram por serem corajosos ou destemidos... fizeram-no porque não tinham alternativa. Um país rodeado por Espanha e mar... e Espanha não era opção. Se queríamos sobreviver, teríamos de entrar pelo mar. E comigo foi o mesmo. O meu computador não carregava jogos... a minha única alternativa foi programar nele.

Vamos então assumir que eu tinha 7 anos de idade. Tinha o meu primeiro computador que não carregava jogos e um manual do computador que explicava os princípios básicos de programação em "BASIC". Comecei a lê-lo e a fazer pequenas rotinas. Delirava com o que conseguia fazer. E desde então soube que quando crescesse queria ser programador de jogos. Acho que este foi o meu único sonho. Nunca quis ser bombeiro, nem polícia, nem astronauta. Sim... queria poder voar e cheguei a rezar muitas vezes ao menino Jesus para me dar umas asinhas de anjo que sobrassem lá no céu. Cheguei a prometer que não contava a ninguém mas acho que nem isso o convenceu.

Lembro-me vagamente de ter encontrado um livro de programação lá em casa, que seria certamente do meu irmão, e mais tarde comprei outro de gráficos 3D em "BASIC". Anos passaram-se e apareceu o primeiro computador lá em casa. Um Compaq Presario 433. Eu queria programar, instalar coisas, ligar-me a BBS, experimentar... e fui abafado e castrado pela ignorância daquela casa. Ignorância essa que perdura.

Por referência de um grande amigo, comprei aos meus 14 anos um livro intitulado "Tricks of the Game Programming Gurus", o qual devorei, apesar de não conhecer a linguagem "C++" nem o conceito de programação orientada a objectos. No secundário tive 3 anos de informática onde aprendi "GW-BASIC" e "Pascal". E apesar de ser dos melhores alunos nesta matéria, ainda não me sentia conformado. Aos 19 anos de idade comprei o livro "Teach Yourself C in 21 Days" o qual li de fio a pavio, sem nunca ter um computador onde testar o que ia aprendendo. Nesta altura servia à mesa num hotel em Londres e vivia num pequeno quarto alugado com outras 7 pessoas.

Foi só aos 23 que voltei a pegar em qualquer coisa relacionada com informática. E por mão do meu irmão que tanto insistiu comigo para que voltasse a estudar.

"Toma... tá aqui um folheto da escola ali de cima. Eles têm lá cursos de computadores e aquelas coisas que gostas. Vai até lá e inscreve-te. Mas faz qualquer coisa... pelo menos tira o 12º ano!" - disse ele.

Só lhe posso agradecer. Se naquele dia ele não o tivesse feito, provavelmente hoje eu ainda estaria a trabalhar como estafeta ou cozinheiro.

Os anos passaram-se. Terminei o meu curso técnico-profissional de informática. Comecei a trabalhar como administrador de redes, o que não poderia estar mais longe daquilo que queria fazer, mas era uma porta de entrada para este mundo. E foi essa porta que me levou à empresa em que estou. Sim Randy... tive sorte!

Hoje em dia trabalho como "Web Developer" numa das maiores agências de marketing online em Portugal. Trabalho com criativos, designers, pessoal de video, 3D, flash e outros programadores como eu. Adoro o ambiente, os meus colegas e o meu trabalho diário. Vibro com os desafios, com as novidades e com a inovação. Amo a cultura de meritocracia que se vive e a postura de uma empresa multi-nacional. É provavelmente o mais próximo que estarei de uma empresa que cria jogos. O mais próximo do meu trabalho de sonho.

Hoje comprei um livro. Chama-se "XNA 2.0: Game Programming Recipes". Não sei o dia de amanhã... mas não vou desistir do meu sonho.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O filho pródigo


Quantos de nós que vivemos em Lisboa, visitam o Mosteiro dos Jerónimos, deslocam-se até à Torre de Belém ou tiram fotografias ao Cauteleiro? Quantos de nós vão até ao Adamastor e olham para aquele pôr-de-sol como se fosse o último? Ou tiram uma fotografia com o Eça na Brasileira? Pois... é exactamente quando temos dados por garantidos que não apreciamos devidamente aquilo que estamos a ver, sentir e viver. Porque sabemos ou achamos que amanhã vão estar lá de novo. E mesmo que amanhã não nos apeteça, vão estar sempre lá à nossa espera...

Não estava nervoso nem tampouco ansioso. Não constituía novidade. Tudo me era familiar. Sabia para onde ir, como ir e o que fazer. Estava em casa de novo. Comprei o meu "one day travelcard - zones 1-6" e segui para o coração da cidade. Ia ser directo. Ia ser o mesmo caminho que havia percorrido tantas vezes.

"The next station is Picadilly Circus. Mind the gap." - disse uma voz que não se cansa com o passar dos anos, como que parada no tempo.

Foi quando cheguei à superfície que tudo mudou. Senti-me feliz. Senti-me em casa. Num sítio muito meu, cheio de boas recordações, de cheiros, cores e sons. A minha cabeça estava agora cheia de pessoas, locais, acontecimentos... parei e rodei sobre mim mesmo, olhando para todos os edifícios e pessoas, que indiferentes ao que sentia, seguiam os seus próprios caminhos. Peguei na máquina fotográfica e comecei a tirar fotografias. Comecei a pensar onde gostaria de ir a seguir e que fotos queria levar para não mais me esquecer. Para recordar.

Foram cerca de 4 horas a pé... sem parar. E nunca foi demais. Nunca fiquei cansado. Era o tempo que tinha disponível para voltar a encher a alma. E foi tempo suficiente para me lembrar o vício. Foi tempo suficiente para querer voltar e mais uma vez deixar tudo para trás.

Será que devo? Serão estes os melhores motivos? Deverei ceder ao que o coração me diz para fazer quando a razão me diz para ficar quieto? Onde me levou antes o coração? Não devo hoje o que tenho à razão? E será o que tenho hoje aquilo que quero? E quanto mais penso nestas e noutras questões, enquanto as peso na balança cega das decisões, onde frequentemente se vangloria a indecisão... mais compreendo que este é um capítulo que ainda não dei por terminado. É um assunto por resolver e que precisa de ser fechado.

Não sei quando, mas vou voltar. E quando voltar vai ser diferente. Desta vez... venho preparado!

sábado, 13 de setembro de 2008

Nuestros hermanos


A minha percepção do povo brasileiro e do Brasil tem vindo a sofrer significativas alterações. Curioso. À medida que escrevo isto apercebo-me que o mesmo se deu relativamente aos espanhóis há alguns anos atrás. E em ambos os casos pelo mesmo motivo. Porque comecei a conviver com eles... e a conhecê-los.

Fui educado pela lobotomização nacionalista e pela perversão mediática. Sou um filho do pós-revolução. Temos uma identidade cultural fortemente assente em conflitos, frustrações e insegurança... pela nossa "pequenês". Receamos a investida económica espanhola, cedemos aos acordos luso-brasileiros e tudo isto porque já não somos os portugueses de há 500 anos atrás.

Comecei a dar-me com espanhóis em Inglaterra. O que facilitou. Éramos estrangeiros em terras de Sua Majestade e isso fez com que sentisse um elo de ligação diferente. E por isso permiti-me a conhecê-los e a confraternizar com eles. Acabei por perceber que não só desconheciam este nosso "ódiozinho" por eles como ainda por cima gostavam de nós. Que figura de parvo.

Os nossos irmãos atlânticos. As minhas primeiras impressões desde sempre estiveram contaminadas. Um simples "Oi?" em vez de um "Como?" chegavam a ser suficientes para me tirar do sério. Hoje em dia, "amo" o "irado", "animal" e "surreal". Talvez tenha tido sorte por ter conhecido brasileiros "super gente fina". Uma "galera" que gosta de "ir na balada". Apetece-me ou "tou afim"? Nós dizemos e eles "falam". Tem piada... segundo ela temos também uma divergência nos plurais. Será "morro de saudade de salada de aspárago" ou "morro de saudades de uma salada de espargos"? Quem sabe...

Da mesma forma que nem todas as portuguesas têm bigode, nem todos os portugueses se chamam Manel e nem todos são padeiros... também nem todos os brasileiros são calões que se limitam a apanhar côcos suficientes para os "chops" do dia. Nem todos são criminosos de favela. Estes são estigmas e preconceitos que se foram gerando ao longo do tempo e que facilmente poderão ser quebrados...

...basta nos querermos conhecer.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Óscar à trois


Juro que fiquei emocionado. Consegui esconder o quão excitado estava com a ideia ao deixar transbordar somente um ligeiro sorriso. Levantei-me e dei-lhe um fervoroso aperto de mão e voltei a sentar-me. A minha cabeça borbulhava com ideias, com ramificações daquela ideia base, daquele conceito. 

"Genial!" - escrevi eu.

Estava no "papo". Era aquilo que procurávamos. Era aquela a ideia que nos iria levar a um desfecho vitorioso. Tive logo a certeza... e ele também.

"E tu minha menina vais-te juntar a nós..." - disse-lhe em tom de brincadeira, deixando claro que um "não" estaria fora de questão.

A verdade é que ela se tornou uma pessoa muito especial para mim. Uma pessoa que profissionalmente muito admiro e respeito. E tê-la na equipa dava-me automaticamente outro alento.

Ele já nem conseguia pensar noutra coisa... e em boa verdade, nem eu. Combinámos ficar os 3 no escritório até mais tarde nessa noite para discutirmos ideias e conceitos. E é nestas alturas que percebemos o poder da motivação das pessoas. E do que são capazes quando tomam os projectos como seus. Fosse por outro motivo e talvez não tivessemos ficado de bom grado várias horas em "brainstorming".

Aqui tínhamos 3 pessoas de áreas diferentes num universo empresarial de 5 áreas... mas com um denominador comum: derivados de "IT". Achámos que deveríamos explorar as outras 2: marketing e design.

Olhando para trás, encontro realização na proporção que a ideia tomou, na volta que soubemos dar ao conceito inicial, a todos os novos segmentos e ramificações que surgiram e ao potencial que se encontrava por trás de cada um deles. O BluEgo poderia ser uma realidade. E todos havíamos feito parte disso.

Empenho. Entrega. Dedicação. Não faltou nenhum... e isso apenas se pode traduzir em vitória!

Mas a vida não são apenas vitórias. Existem também derrotas. E também elas assumem um papel importante na vida. É importante saber perder. É importante perder para compreendermos o valor de ganhar. Torna-nos humildes. Desafia-nos a melhorar e a crescer. Torna-nos mais competitivos.

Lembro-me de forma um tanto ou quanto vaga de alguém uma vez me ter dito que ao contratar um executivo, preferia aquele que já tivesse falhado uma ou mais vezes ao invés de um que apenas tivesse conhecido o sucesso. A explicação era simples: o primeiro já sabia o que evitar e de como evitá-lo... e já o segundo podia apenas ter tido sorte até então e ainda não estar devidamente preparado. Neste seguimento recordo-me também de ter ouvido que falhar faz parte do processo de atingir objectivos. A descoberta científica de uma nova cura para o cancro representa uma ínfima fracção das tentativas feitas nesse sentido. Foi preciso falhar muito para conseguir chegar lá. Foi preciso não ter medo de falhar e continuar a tentar. Foi preciso aceitar um possível falhanço como um novo avanço.

"Oi... sabes quem ganhou?! A equipa de motion. Achas isto normal?!" - disse ela assim que atendi o telemóvel.

"Well, a ideia era boa... tem imenso potencial. Se era o tipo de coisa que estaríamos à procura... não sei. Mas não me choca..." - disse eu, sabendo perfeitamente que ela estaria a brincar.

"Estúpido, estou a gozar... GANHÁMOS!!!" - gritava ela, compensando o ruído ensurdecedor que o metro fazia ao chegar à estação.

A noite começara bem e abeirava-se agora a segunda vitória do dia. A multidão juntava-se. Ouvia-se "A Portuguesa" e os vendedores ambulantes promovendo um patriotismo interesseiro. Os cachecóis dançavam ao sabor do vento, ao som dos rios de cerveja e do crepitar das febras. Na práctica esta era a primeira vez que ia ver um jogo de futebol ao estádio. E Portugal ia dar uma "coça" à Dinamarca. Acho que não preciso de falar mais do jogo. Se o resultado foi justo? Não...

"Epá... o futebol tem destas coisas e até ao apito final é tudo jogo." - disse ele.

Se calhar tivemos sorte. Mas uma coisa é certa. Não temos medo de falhar.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

A vida em OOP

Estava cansado. Mal conseguia falar direito e muito menos organizar os meus pensamentos. Tinha sido um fim de semana muito intenso. Ela vinha a dormir atrás e ele vinha ao meu lado a guiar o carro dela. Olhei para eles. Ele concentrado, certamente ainda a pensar sobre os nossos últimos dias... ela, tinha acabado de conhecer. Os seus olhos meigos estavam agora fechados e a tranquilidade que vivia na sua face escondia o sorriso de minutos atrás.

Os meus sentidos rendiam-se agora à basicidade do que nos rodeava. Limitavam-se a compreender e a interagir com as coisas simples que me eram apresentadas. Na disformidade das texturas. Na panóplia de cores. Nos cheiros associados. Nas propriedades dos objectos que constituíam o meu novo mundo.

"Não vais acreditar... mas e se te dissesse que em fracções de segundo a minha cabeça me levou a criar uma analogia entre a vida e programação?" - perguntei.

"Diria que ainda estás sobre o efeito das nossas 3 últimas noites!" - ok... ele não disse isto... mas admito que o tenha pensado.

Tudo são objectos. E encontro-os em todos os lugares. Que encerram em si as propriedades que os definem. Conceitos que se traduzem por classes e que através delas se materializam. Fábricas de objectos que respeitam os conceitos em que se inserem. Delegados que transmitem ordens e permissas. Objectos que se cruzam. Que transitam. Padrões. Que se encontram nas interfaces da sociedade. Que se respeitam e dão a conhecer. Contratos. Referências e valores. Conceitos abstractos. Objectos derivados. Estáticos e em movimento. Boas práticas. Acordos selados e protegidos, privados ou públicos. Objectos que comunicam e trocam impressões entre si. Criação e destruição... quem instanciou o "big-bang"? Quem foi o programador que criou este mundo de vida e de quem são os mundos que crio?

Foi talvez um fim de semana demasiado intenso. Fechei os olhos, sorri... e adormeci.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Portugaru San

A primeira experiência de que me lembro com o sexo oposto foi no mínimo estranha. Já nem me lembro do nome dela. Lembro-me da rejeição, da humilhação e de ser preterido a favor dele... mas do nome dela, nem por isso. Mas ainda me lembro do que me chamou.

"Chinesinho!!!" - gritou ela. - "Eu não quero brincar com o chinesinho..."

Eu deveria ter os meus 5 ou 6 anos de idade. Nessa altura, as nossas famílias constumavam passar os verões juntas, alternando entre a casa de uns e outros, entre Vilamoura e Vale Navio, entre a nossa casa e a dele. Gostava mais de Vilamoura... mas a piscina dele era bem maior! E foi lá que a conheci... e com tenra idade, a percepção das linhas faciais.

"Realmente o rapaz tem traços chineses. Diz-me meu menino... tens algum familiar chinês?!" - perguntaram-me a dada altura.

A verdade é que não. Não tanto quanto saiba. E não pensem com isto que tal questão me possa afligir. Mas de facto tanto a mãe do meu pai como a minha própria mãe, ambas aparentavam os mesmos traços e certamente foi delas que adquiri os meus. Mas como disse... não, não tinha.

"Chinesinho limpópó!!!" - troçava.

Estávamos agora em 1993. Sentia-me nervoso. E não era caso para menos. Não só era minha tia com também era a primeira vez que ia ao teatro. E tinha medo de não compreender. Tinha medo de com isso a desiludir. Ela que na altura seria das poucas pessoas do lado da família da minha mãe com quem me identificava. Porque era diferente. Porque contra as adversidades da vida havia vingado. Porque a admirava. Porque era inteligente, linda e simpática... e porque era minha tia.

Lembro-me de uma sala escura. De um foco de luz. Uma capela. E no meio da sala lá estava ela. Impávida e serena, a aguardar... o Senhor Portugal em Tokushima.

Hoje em dia não nos falamos. Não por não respondermos aos convites que já não existem. Não por nos ignorarmos nos encontros que não acontecem. Mas porque não nos procuramos.

Às vezes lembro-me dela. Lembro-me da história dos cogumelos frescos e do arroz frito. Lembro-me da minha pequena prima. De um terraço sobre o rio. Lembro-me daquele bar cheio de outros artistas. De quando nos cruzávamos nas imediações da casa da minha avó... e pouco mais. Mas quando me lembro dela, lembro-me de tudo isto...  e lembro-me com carinho. Com pena. Com mágoa.

No outro dia veio à minha memória. Não sei porquê, mas liguei-lhe. O número estava certo. A indiferença na voz que se fez ouvir não. Foi estranho. Não falava com ela há anos. Pensei que fosse ficar contente. Foi uma daquelas trocas de palavras vazias e desprovidas de qualquer pertinência. Palavras de ocasião que servem para nada mais que quebrar o silêncio que as precede. Pergunto-me quem terá abandonado quem. Pergunto-me se deverei deixar certas relações ficarem onde elas pertencem... na nossa memória. Onde apesar de permanecerem felizes espelham nada mais que uma mentira. Outra mentira...

Fiquei triste mas revalidei o que no fundo já sabia. Que trilhamos caminhos diferentes. Que atribuir culpabilidades sobre quem estragou uma relação não só não a trás de volta como também não nos faz sentir melhor. Aconteceu. A relação morreu. E agora resta-me viver com isso... ou esquecer.

Opto por esquecer...

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Viagem ao mundo dos sonhos


Ao contrário de Martin Luther King, eu tenho vários sonhos. De alguns tive de abdicar, de outros começo a perder esperança e encontro-me agora agarrado com todas as forças aos poucos que me restam. E foi quando li "A última aula" de Randy Pausch que reflecti sobre algo que nunca havia feito. Sobre ajudar os outros a atingirem os seus sonhos.

Recordo-me que a dada altura, Randy fala de como com o avançar da idade, nos tornamos menos egoístas e começamos a retirar mais prazer daquilo que damos do que obtemos. E encontro-lhe alguma razão. Ou pelo menos acho que começo a compreendê-lo. Fui presenteado com a oportunidade única de ajudar alguém a concretizar o seu sonho. E aquilo que sinto desde então é inexplicável. Talvez por ser um dos meus sonhos. Talvez por ele ser um dos onze. Não sei... apenas sei que através dele consigo viver o meu sonho e que ajudá-lo me faz vivê-lo ainda mais.

No outro dia comentávamos as voltas que a vida dá e as partidas que nos prega. E como por trás de um acontecimento desfavorável, mantendo uma postura positiva, se esconde pontualmente uma oportunidade. E essa oportunidade surgiu, infelizmente à custa de algo que lhe custa ainda ultrapassar, e ele soube agarrá-la. Foi uma limpeza de alma. Um redescobrir-se. Um desencadear de eventos que levou à geração de um sonho. Sonho que agora abraça e que já se encontra a viver.

É aqui que encontro esperança. Sabendo que ainda podemos gerar sonhos. Sabendo que apesar de ter perdido velhas oportunidades, novas poderão surgir, e isso dá-me um novo alento.

A viagem começou. É uma viagem de estado de espírito, uma viagem de auto-conhecimento e auto-conceito. Uma viagem que desafia os nossos limites e testa todas as componentes da nossa vida sócio-cultural. É uma viagem que torna qualquer indivíduo não um cidadão mas um Homem do mundo. Uma viagem que trará tal riqueza de vida e experiência enquanto ser humano que não existe dinheiro que possa pagar. Uma viagem intransmissível. Uma viagem de sonho.

Eu sei que ele quer fazer esta viagem sozinho. E tem de fazê-la sozinho. É parte integrante do seu sonho. Mas ele sabe que sozinho é a última coisa que vai estar...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Sangue de Lory

Sou uma pessoa de contrastes. E não se entendam contrastes por desequilíbrios... se bem que admito que eles existam. Pretendo com isto dizer que sou de carácter, sentir e ser moldado por uma vida de opostos. Um contraste de genes e instrução. Sou filho de gente pobre educado por ricos. Educado a ser temente a Deus e dele nem vislumbre. Amado como se ama um filho e abandonado com quem viu em mim um fardo.

Mas tornou-me mais forte... carente, mas forte. Sensível... mas com uma dose de frieza.

Sou sangue de gente humilde que nunca conheci, com quem pouco convivi e de quem me comecei a aproximar. E mesmo acerca destes, pouco sei, porque a vida assim o quis. Mas de todos, houve para mim quem se destacasse... e foi a mãe do meu pai. A minha avó. A minha adorável, linda, cheia de vida... avó. Que faleceu no ano passado e que através da minha tia, me deixou uma pulseirinha.

E o destino, o fado, a fatalidade e a sina seguiram o seu rumo.

Quis o destino que nos voltássemos a encontrar. Como que me permitindo uma última oportunidade. Um doce amargo. Como que sabendo os dias que se avizinhavam e a fatalidade que adviria. Quis o fado que eu pudesse sentir a felicidade de abraçar e reclamar o meu direito. O direito de sangue. De poder sentir o que todas as famílias devem sentir e que eu nunca tive. E a minha avó era toda ela fado. E o destino concedeu-me esse último ano da sua vida... para que pudesse relembrar com ternura estes encontrados sentimentos e chorar por todos os anos anteriores que os podia ter tido. No fim, a fatalidade levou-a.

Mas a sina, atenta, deu-me mais do que poderia pedir. Num gesto de complacência deu-me uma "bebé tia". Deu-me uma pessoa que tanto deu à minha avó, que tanto reteve dela, que em tanto se assemelha e que eu não quero perder... que não quero largar mais. Nem à pulseirinha.

"Acho que não me roubaram nada... não estou a ver nada em falta... esperem... a pulseirinha da minha avó!!!"

Depois de vasculhar o quarto, não encontrei a pulseirinha, que ainda se encontrava no mesmo envelope em que a "bebé tia" havia colocado e escrito o meu nome. Era capaz de jurar que estava na prateleira ao pé dos livros.

"De acordo com o que vimos no andar de cima e o que lá roubaram, trata-se de um grupo de crime organizado que pensávamos já se ter ido embora. Já apanhámos 6 delas... mas pelos vistos voltaram!" - disse o agente, enquanto recolhia impressões digitais da ombreira.

Ele disse "delas"? Depois de algumas explicações percebi. Eu fui assaltado por um grupo de romenas.... noutro contexto eu até teria ficado contente, até porque não me tinham levado nada.

"Oh colega... chegue aqui. O que é que lhe parece? Parecem impressões de uma criança." - disse o outro agente.

A minha cabeça continuava a vaguear pelas imagens de belas, exóticas, altas e esguias morenas... mas rapidamente foram substituídas por uma criança ao colo de ciganas velhas, gordas e vestidas de preto. Consegui com sucesso remover as novas impressões gráficas que me atormentavam e voltar ao meu fetiche pessoal. Se fui assaltado por "miúdas"... então que fossem boas!

Agora realmente tudo fazia sentido. Não me levaram o portátil, nem a máquina fotográfica nem tantas outras coisas que aqui tinha e que acreditava serem as primeiras coisas a desaparecer. Mas até então eu também desconhecia que existiam grupos de crime organizado femininos. Sabem o que roubaram no andar de cima? Roupa, sapatos, anéis, porta-chaves, canetas... e dinheiro, claro.

Mais tarde, enquanto me arranjavam a porta da frente, resolvi dar uma arrumadela no quarto. Sabem o que descobri? Claro que foi a pulseirinha. E sabem como me senti? Pois... isso eu também já não consigo colocar por palavras. 

Com isto chego a uma conclusão: se é para existirem assaltantes... então que sejam todas mulheres!!!

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Filhos de uma Croata


Nem queria acreditar no que estava a ler, mas a mensagem era clara e sucinta... não existia espaço para erro ou confusão. Tinha acontecido. O desmoronar de ideias deu lugar a um estado de automatismo que me levou ao gabinete dele. À medida que me deslocava só conseguia pensar no como, quando e porquê de ter acontecido. Mas tinha que lhe dar qualquer tipo de satisfação antes de sair. Depois de o fazer, voltei à minha sala onde já comentavam se aquilo estaria mesmo a acontecer... se era de facto verdade. Infelizmente era.

Nunca o caminho para casa me tinha parecido tão moroso... e contudo mal me lembro dele. O meu pensamento ia de encontro à minha perda. Aos anos de trabalho e recordações. Ao suor e custo que havia empregue em cada uma das peças. Porque ao contrário do que se poderia esperar, não se tratava apenas de uma perda material... tratava-se de ferir a minha liberdade, de corromper a minha independência e violar a minha privacidade. Imaginei um cenário assolador. Esperei o pior.

Assim que cheguei, estranhei a tranquilidade que se vivia na rua e na entrada do prédio, alheias ao sucedido, como se de qualquer outro dia tratasse. A verdade é que por momentos me fez sentir que tudo estava bem. Tratara-se de um erro, de um mal-entendido ou até de uma partida de mau gosto. Como estava longe da verdade. O interior do prédio revelou-se diferente... e fez-me voltar à realidade que temia.

À medida que subia as escadas, deixei de pensar... estava em branco. Recordo-me vagamente de passar por elas. Diziam algo que na altura me foi impossível decifrar. A minha cabeça estava ao rubro e prestes a sucumbir. E foi um longo silêncio que culminou com o abrir da porta.

"César, a tua casa foi assaltada e a minha também." - dizia a  mensagem de texto que havia recebido cerca de 30 minutos antes.

À medida que varria o quarto com os olhos, fazia o contraste entre o que encontrava e o que esperava que tivesse sido tomado, como se de uma "checklist" tratasse. Devo ter estado cerca de 2 minutos, calado, focado no que me haviam roubado...

"Nada... não acredito... não me roubaram nada... nada mesmo!!!"

E aqui foi a vez da tempestade dar lugar à calmaria. Uma calmaria exterior. Não deixava de sentir uma enorme impotência e frustração. Mas estes são sentimentos passivos.

Há coisas que nunca havemos de conseguir explicar. E existem diversos pormenores neste "assalto" que me causam alguma espécie. Segundo a polícia, vários "gangs" de crime organizado croata e romeno, têm operado nesta área. O mesmo "modus operandi". E não estranham o facto de não terem levado nada...

"Sabe... estes fulanos apenas andam à procura de dinheiro e ouro. Não lhes interessa serem apanhados com peças incriminatórias nem tão pouco têm receptores para determinados produtos. Acredite que não acho estranho... vejo com cada coisa!"

Não sei até que ponto estas palavras me tranquilizaram. Acho que nada mesmo. A verdade é que continuo com medo. Sinto-me inseguro. Vulnerável. Ouço ruídos pouco usuais lá fora. Mas também nunca estive em casa sem música ou televisão... por isso também não sei quais são os ruídos habituais mesmo.

"Eles hoje pelo menos já não devem voltar..." - diz um dos vizinhos.
"Olhe que cá para mim isto foi só o início... a seguir somos nós." - diz uma das vizinhas.

O burburinho virou opinião. A troca de opiniões deu aso a conversa. E a vizinhança juntava-se à medida que chegava. E tão depressa tudo começou como terminou. As portas fechavam-se e muitas pessoas jantaram hoje mais tarde que o habitual. E a vida deles normalizou...

A minha porta continua aberta... não consigo fechá-la. Vou tentar ficar acordado.
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