quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Hodgkin - parte I

Lembro-me, ainda que vagamente, de algumas das caras. Mas mais do que caras, lembro-me das circunstâncias que nos uniram, dos episódios que nos marcaram. Lembro-me dele mais do que de qualquer outro. Será por termos partilhado um quarto? Será por ter sido o meu primeiro amigo de cor? Ou seria por ter apenas uma perna? Pelos gritos de dor e sofrimento não foi... porque naquele sétimo piso, foram raras as noites em que não houvesse alguém a gritar por alguém.

Era noite e recordo-me nitidamente de estar cansado. Talvez já me devesse ter ido deitar. Mas era miúdo. E nessa altura tentava sempre ficar acordado até um pouco mais tarde. Fazia-me sentir adulto. Tinha nesta altura 12 anos. Entrei na sala e dirigi-me ao sofá de dois lugares. O meu irmão via televisão como habitualmente àquelas horas. Eu fazia o mínimo barulho possível para que ele não desse por mim. Talvez assim ele não me mandasse para a cama.

"Vai-te deitar. Amanhã é dia de colégio..." - dizia ele.

Normalmente fingia não ouvir. Ou então pedia para ficar apenas mais 5 minutos. Não nessa noite. Nessa noite eu não desci para ir ver televisão. Não desci por querer companhia. Não desci para ficar acordado até mais tarde. Não. E definitivamente estava longe de me querer tornar mais adulto. Entrei na sala. Sentei-me no sofá... e gradualmente deixei de respirar.

Lembro-me dele a gritar pelo meu nome, de colocar-me aos ombros, de descermos para o carro. Recordo-me de entrar nas urgências do hospital, de me colocarem numa maca, administrarem oxigénio, fechar os olhos... e acordar. Ainda estávamos na mesma noite. Não sei quanto tempo passou mas garantidamente era a mesma noite.

"O seu irmão teve um ataque de asma. Entretanto as análises ao sangue revelaram também estar com uma anemia por falta de ferro. Vamos mantê-lo esta noite por cá para fazermos mais algumas análises." - disse o médico.

Mal abria os olhos. Já há muito tempo que a minha asma não se manifestava. E nunca com esta violência. Havia deixado os vaporizadores e inaladores há já uns anos. Também já não frequentava o médico da asma. As aulas de natação tinham ficado para trás. Teoricamente a asma deveria ser problema do passado. Fiquei essa noite no hospital para observação...

"Houve uma complicação e infelizmente perdemos algumas das análises. Seja como for, existem alguns exames que gostaríamos de repetir, para clarificar uma possível situação." - disse o médico no dia seguinte.

Impressionante a forma como a nossa memória funciona. Consigo lembrar-me deste tipo de pormenores passados cerca de 17 anos. E quem me conhece sabe que eu mal me lembro do que jantei na noite anterior. Passados dois dias no hospital, chegou um diagnóstico para o qual o meu irmão não estava preparado. Não de novo. Não tão cedo.

"Como é que isso se pronuncia?" - perguntei.

Fui transferido para o IPO. Para o sétimo piso... departamento de pediatria. E foi aí que o conheci. Estava sempre a rir-se. E apesar de ter apenas uma perna, era dos que mais "corria" naquele corredor. Ficámos no mesmo quarto juntamente com mais 4 miúdos. Lembro-me mais das cicatrizes de cada um do que propriamente das feições. Nomes, esses, perderam-se com o tempo. Destes últimos não guardo recordações claras. Mas acho que é normal. Aquelas camas ao nosso lado tiveram uma rotatividade invejável. Talvez por não serem casos tão graves.
Esta era a minha nova casa. E nesta altura, eu ainda mal sabia o que esperar...

3 comentários:

Anónimo disse...

Doença prolongada... engraçado os eufemismos que lhe colocam... como se somente a pronunciação da palavra, só por si, pudesse tornar a doença passível de ser manifesta no corpo! Mas quando tal acontece, é como se o mundo desabasse, para o próprio e para os que o amam... será o fim? Começam os medos, as perguntas, as procuras incessantes de respostas seja onde for... e, depois, surgem as dificuldades, as dores, os rituais, os cheiros, a esperança mesmo assim... Na verdade, é só mesmo isso que resta, a esperança... És um vencedor e sabes o quanto me orgulho de ti e da força que tens! Mazelas? Essas claro, ficam sempre... mas se assim não fosse, também não serias o meu pikatxu! :P Adoro-te! *

Moquinha disse...

Ninguem, à excepção de quem já passou por isso consegue entender na totalidade o que se sente...passei muitos dias no IPO e sabes por que moltivo e recordo-me de muitos episódios, felizmente a tua avozinha conseguia fazer daquela fria e agustiante sala de quimioterapia um local harmonioso. Herdas.te a força dela e isso faz de ti uma pessoa tão forte e de bem com a vida. A tal doença prolongada não vai aparecer mais, já se prolongou quando teve que se prolongar e findou e foi embora para sempre. FIM :)

Unknown disse...

Sim, a nossa memória é algo de impressionante… recorda muitos momentos passados, momentos que nos marcaram, por coisas boas ou más, até situações que se passaram connosco, as quais não nos lembramos, e que nos contaram, vêem muitas vezes á memória….

Lembramo-nos dos pormenores mais incríveis, de algo que já se passou á imenso tempo, e muitas vezes, como dizes e muito bem, nem nos lembramos do que jantámos ontem…

Do pouco que conheço, e antes de saber que tinhas este problema, já te considerava uma pessoa forte, mas depois de saber que tinhas este problema, ainda te considerei uma pessoa mais forte… porque se fosse comigo… acho que não era tão forte…

Mas tu destes sempre a volta por cima, e por isso e muito mais, considero-te um amigo muito especial…

Preciso de pessoas assim á minha volta, e tu sabes porquê…

Eu acredito que o que aconteceu, não vai voltar a acontecer, no entanto quero que sabias que podes contar sempre comigo, posso não ser uma pessoa forte para comigo, mas sou para aqueles que considero especiais…

Beijos da tua admiradora :)

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