Lembro-me, ainda que vagamente, de algumas das caras. Mas mais do que caras, lembro-me das circunstâncias que nos uniram, dos episódios que nos marcaram. Lembro-me dele mais do que de qualquer outro. Será por termos partilhado um quarto? Será por ter sido o meu primeiro amigo de cor? Ou seria por ter apenas uma perna? Pelos gritos de dor e sofrimento não foi... porque naquele sétimo piso, foram raras as noites em que não houvesse alguém a gritar por alguém.
Era noite e recordo-me nitidamente de estar cansado. Talvez já me devesse ter ido deitar. Mas era miúdo. E nessa altura tentava sempre ficar acordado até um pouco mais tarde. Fazia-me sentir adulto. Tinha nesta altura 12 anos. Entrei na sala e dirigi-me ao sofá de dois lugares. O meu irmão via televisão como habitualmente àquelas horas. Eu fazia o mínimo barulho possível para que ele não desse por mim. Talvez assim ele não me mandasse para a cama.
"Vai-te deitar. Amanhã é dia de colégio..." - dizia ele.
Normalmente fingia não ouvir. Ou então pedia para ficar apenas mais 5 minutos. Não nessa noite. Nessa noite eu não desci para ir ver televisão. Não desci por querer companhia. Não desci para ficar acordado até mais tarde. Não. E definitivamente estava longe de me querer tornar mais adulto. Entrei na sala. Sentei-me no sofá... e gradualmente deixei de respirar.
Lembro-me dele a gritar pelo meu nome, de colocar-me aos ombros, de descermos para o carro. Recordo-me de entrar nas urgências do hospital, de me colocarem numa maca, administrarem oxigénio, fechar os olhos... e acordar. Ainda estávamos na mesma noite. Não sei quanto tempo passou mas garantidamente era a mesma noite.
"O seu irmão teve um ataque de asma. Entretanto as análises ao sangue revelaram também estar com uma anemia por falta de ferro. Vamos mantê-lo esta noite por cá para fazermos mais algumas análises." - disse o médico.
Mal abria os olhos. Já há muito tempo que a minha asma não se manifestava. E nunca com esta violência. Havia deixado os vaporizadores e inaladores há já uns anos. Também já não frequentava o médico da asma. As aulas de natação tinham ficado para trás. Teoricamente a asma deveria ser problema do passado. Fiquei essa noite no hospital para observação...
"Houve uma complicação e infelizmente perdemos algumas das análises. Seja como for, existem alguns exames que gostaríamos de repetir, para clarificar uma possível situação." - disse o médico no dia seguinte.
Impressionante a forma como a nossa memória funciona. Consigo lembrar-me deste tipo de pormenores passados cerca de 17 anos. E quem me conhece sabe que eu mal me lembro do que jantei na noite anterior. Passados dois dias no hospital, chegou um diagnóstico para o qual o meu irmão não estava preparado. Não de novo. Não tão cedo.
"Como é que isso se pronuncia?" - perguntei.
Fui transferido para o IPO. Para o sétimo piso... departamento de pediatria. E foi aí que o conheci. Estava sempre a rir-se. E apesar de ter apenas uma perna, era dos que mais "corria" naquele corredor. Ficámos no mesmo quarto juntamente com mais 4 miúdos. Lembro-me mais das cicatrizes de cada um do que propriamente das feições. Nomes, esses, perderam-se com o tempo. Destes últimos não guardo recordações claras. Mas acho que é normal. Aquelas camas ao nosso lado tiveram uma rotatividade invejável. Talvez por não serem casos tão graves.
Esta era a minha nova casa. E nesta altura, eu ainda mal sabia o que esperar...